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Baependi - Notícias
29/06/2018 08h45

Consenso e conflito na Serra do Papagaio - Parte IV

Criação da Estação Ecológica do Papagaio e o contexto histórico ambiental


Por Mariana Junqueira

Quarta parte
As montanhas que compõem a região atravessaram o tempo e chegaram à nossa época com novas impressões, realidades e conflitos. A proposta é desvendar as influências ideológicas que levaram à criação da unidade de conservação estudada; assim como em qual conjuntura isso ocorreu. A beleza cênica da região e o interesse pela memória regional, somados às perspectivas naturalistas e às explorações minerais constituíram-se no pano de fundo da primeira unidade, a Estação Ecológica do Papagaio. É imprescindível analisar as relações que se firmam entre o homem e a natureza sob essas novas correntes ecológicas e a emergente noção da natureza sem habitantes, importada do tio Sam para as terras tupiniquins. A compreensão do modelo de conservação brasileiro é central para seguir o percurso proposto, que discorre sobre três unidades de conservação com distintas possibilidades de uso do território. São elas: a Estação Ecológica, o Parque Estadual da Serra do Papagaio e a unidade de uso sustentável que engloba a região, a Área de Preservação Ambiental da Serra da Mantiqueira.
A região estudada é parte do Circuito das Altas Montanhas da Mantiqueira que, na década de 70, começou a receber visitantes, acampavam e ouviam as histórias locais. Algumas histórias da mineração atiçavam a curiosidade dos jovens, que ficavam procurando os locais antigos e andando por toda a região. Em meio ao misticismo antigo, oriundo de histórias de jesuítas e a crenças naturalistas, foram valorizando a preservação da área. Uma das histórias antigas era a do garrafão de ouro que, inclusive, deu nome à Serra do Garrafão, segundo a qual os jesuítas mineravam ouro e, quando foram expulsos pelo império, colocaram-no em garrafões e os enterraram ao pé da serra.
Essa perspectiva naturalista se associou a uma visão mística, acompanhada pela prática de terapias naturais, pela opção por comidas naturais e por uma valorização da natureza e do ambiente natural. Um dos adeptos desse movimento, na década de 80, foi Paulo Maciel que, influenciado por essa visão de mundo, foi responsável pela idealização e instalação da Estação Ecológica do Papagaio, quando se tornou diretor da Fundação Estadual do Meio Ambiente - FEAM, em Belo Horizonte, além de ter participado das discussões para criação da Área de Proteção Ambiental da Serra da Mantiqueira (APA Mantiqueira).
A influência do naturalismo na região estudada foi a reativa, que crê na natureza intocada no mundo selvagem, ou seja, difundindo a ideia de que essas áreas estariam em estado puro, sem contato com a sociedade e que, por isso, deveriam ser mantidas assim, alijadas dos seres humanos, constituindo-se como uma representação simbólica do paraíso perdido que se conecta ao mito naturalista. Esse mito é responsável pela suposição de incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza. O homem seria sempre considerado um destruidor em potencial do ambiente e deveria ser separado de áreas naturais, sendo que essas só estariam a salvo com métodos de proteção total.
Esse mito moderno insere-se em um conjunto de representações do conservacionismo ambiental, responsáveis por uma concepção biocêntrica da relação homem - natureza, na qual o homem não teria o direito de dominar a natureza. Com base em ideais religiosos, principalmente cristãos, ligados à concepção do paraíso perdido, os territórios considerados intocados foram transformados em áreas protegidas na segunda metade do século XIX nos Estados Unidos. Esse modelo de conservação passou a ser chamado de moderno, sendo amplamente divulgado pelos preservacionistas puros, que tinham como objetivo preservar as belezas naturais por meio dessas áreas naturais intactas.
O pensamento mítico também aparece vividamente em culturas tradicionais, tais como nas dos indígenas, caipiras, caiçaras e ribeirinhos, entre outras, embora sob signos bastantes distintos. O imaginário predominante valoriza a simbiose entre o homem e a natureza, tanto no campo prático como no simbólico. Assim, atividades como a pesca, a caça e o plantio, assim como todo o modo de vida, são marcadas por mitos ancestrais, responsáveis pela sua reprodução sociocultural. Podemos considerar esse aspecto simbólico da relação homem - natureza e dos ciclos naturais das comunidades tradicionais como elemento agravante dos conflitos socioambientais, uma vez que a ideia de áreas protegidas sem populações é totalmente incompreensível para essas culturas. Serem proibidas pelo Estado de exercer suas atividades de saber e de fazer em seu território historicamente construído, para privilegiar um imaginário urbano-industrial, significa a supremacia de uma visão de mundo dominante, que privilegia o mito moderno da natureza intocada
Inserida nessa perspectiva mítica simbólica do paraíso perdido, houve a elaboração, no âmago do movimento estadunidense de conservação, da noção de wilderness (mundo selvagem). Trata-se de uma ideia forjada a partir da necessidade de manutenção de grandes áreas desabitadas e selvagens, que deveriam se transformar em espaços de recreação, refúgios de contemplação e beleza, lugares destinados à proteção contra a devastação da sociedade urbano-industrial, reservadas para as populações urbanas estadunidenses, que já vivenciavam um capitalismo consolidado e uma urbanização acelerada. É nessa abordagem que se insere o conceito de áreas protegidas e parques nacionais como áreas naturais, selvagens.
Nesse contexto, a influência do naturalismo e do conceito do neomito wilderness também se espalhou pelo imaginário brasileiro e, em muitos estados, iniciou-se uma articulação para criação de órgãos ambientais e, também, de unidades de conservação. Isso aconteceu, particularmente no Estado de Minas Gerais, com a criação da FEAM e da Estação Ecológica do Papagaio. Logo após a criação da FEAM, houve a implantação do órgão ambiental do Estado em meio à articulação em torno da criação da APA Mantiqueira.
A mineração na região do sul de Minas Gerais foi um evento econômico marcante para a região. Desde o século XVII, a capitania de Minas Gerais conheceu grande riqueza e intenso fluxo migratório. Apesar dessa importância histórica, as lavras não tinham uma produção expressiva. Mas, mesmo assim, em muitos cursos de água entre Aiuruoca e Baependi espalharam-se garimpos que resultaram em cascalhos, restos das terras revolvidas e amontoados de entulhos e pedras.
Apesar da desventura dos mineradores do passado, a região continuou sendo alvo da cobiça mineradora e, mesmo no século XX, foram encontrados registros de inúmeros empreendimentos instalados nos cursos d’água. Alguns chegaram a utilizar máquinas e infraestrutura para a extração. Na década de 30, o rio Santo Agostinho teve a reativação da atividade mineradora, com métodos de desvios e prospecção do cascalho do fundo. Tanto nesse momento, como na década de 60, a localidade do Caldeirão foi seca por meio de canais laterais e maquinários. Na década de 80, houve a tentativa de reiniciar áreas de lavras em Baependi, Aiuruoca e Alagoa. A situação ambiental era preocupante, pois além da mineração, havia inúmeras carvoarias que funcionavam para alimentar a siderúrgica instalada em Caxambu.
Em 15 de janeiro de 1987, foram concedidos alguns alvarás para mineração, autorizava-se a pesquisa de minério de chumbo e cobre na Fazenda Garrafão, e na fazenda Cangalha de Cima. Apesar de solicitarem esses minérios, projetavam extrair o ouro. A partir de então, aconteceu intensa mobilização na cidade de Baependi e diversos ofícios foram expedidos pela prefeitura procurando enquadrar o rio como sendo de classe especial, e, portanto, incompatível com atividades mineradoras, pedindo ao governo do Estado de Minas Gerais revisão do alvará de mineração. Apoiando-se no Decreto Federal nº 91.304, de 03/06/85, de criação da APA Mantiqueira, em conjunto com a lei municipal nº 1.233/87, o leito e as margens do rio foram decretados como área de preservação permanente, ficando o rio enquadrado como sendo de classe especial. Também no ano de 1987 há registros da EMATER – MG de que havia garimpeiros clandestinos de ouro na região de Alagoa e de Baependi e que utilizavam mercúrio em suas atividades.
Portanto, nessa atmosfera de mobilização contra o garimpo, a população começou a preocupar-se com o ambiente do entorno, assim como com os recursos hídricos, a fauna e a flora. E, nesse contexto, aconteceu a criação, no início da década de 90, da Estação Ecológica do Papagaio, sob gerência da FEAM.
O processo se desenrolou sem o conhecimento da população. No Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho de 1990, foi publicado o Decreto nº 31.368, de criação da Estação Ecológica do Papagaio, com 22.788 hectares. Contudo, pouco antes de sair o decreto, o diretor da FEAM conseguiu um sobrevoo de helicóptero pela área, quando identificou falhas no desenho da unidade, pois haviam ficado inúmeras casas dentro do traçado. Decidiu manter o desenho para a publicação e comprometeu-se a realizar a correção do traçado. A metodologia utilizada na época contou com uma imagem de satélite preto e branco, mapas do IBGE e com visitas de campo.
Após a publicação do Decreto, a equipe da FEAM realizou visitas aos municípios e proferiu palestras nas câmaras dos vereadores para explicar o projeto: seus objetivos, propósitos e metodologias. Enquanto alguns se colocaram contra outros pensaram ser uma oportunidade para vender terras pouco produtivas ao Estado.
O relatório técnico considerou a região como uma área de relevante interesse ambiental, pois concentrava as nascentes dos principais rios da bacia do rio Grande, responsáveis não só pelo abastecimento de grandes centros urbanos do sul de Minas, mas também pelo fornecimento de água para atividades como irrigação, geração de energia e turismo, entre outras. Além disso, foi detectada a existência de matas nativas do bioma da Mata Atlântica em Minas Gerais; com formações mistas de campos, matas e áreas de enclave com araucária, características únicas entre as demais unidades de conservação no Brasil. Os elementos paisagísticos dos conjuntos montanhosos da Serra do Garrafão e do Papagaio, a elevada altitude e a declividade da região também foram levados em consideração; e, finalmente, a proximidade com o Parque Nacional do Itatiaia, possibilitando uma maior proteção da flora e da fauna e a preservação de todo o conjunto montanhoso.
Outro ponto destacado no Relatório é que a criação da Estação não havia estabelecido reações adversas ou conflitos sociais, diferente de outras unidades de conservação no país, o que, segundo os técnicos, reafirmaria sua vocação natural para a preservação de bancos genéticos, dos mananciais e da beleza paisagística. Foi ressaltado que isso facilitaria a relação do poder público com os proprietários, já que não significava um entrave ao desenvolvimento econômico local. Essa impressão de ausência de conflitos estava incorreta e, tão logo o Decreto foi promulgado, alguns grupos sociais começaram a se movimentar para mudar os seus limites ou mesmo derrubá-lo, exercendo pressão junto à Procuradoria Geral do Estado (PGE).
Segundo o autor do projeto, algumas áreas foram consideradas de grande relevância ecológica, entre elas a Macieira, no vale do Matutu - Aiuruoca; a Serra do Cangica – Baependi e o Corredor Ecológico que foi pensado para fazer a ligação entre a Estação Ecológica do Papagaio e o Parque Nacional do Itatiaia. Apesar de representantes de todas as áreas com conflitos terem manifestado o desejo de que as mesmas fossem retiradas do traçado, a única demanda que foi considerada legítima foi a do Campo Redondo, bairro de Itamonte, uma vez que muitas casas, sítios, a escola, o hospital, enfim, todo o bairro havia ficado dentro da área da Estação. A correção ocorreu com o Decreto 33.543, de 29 de abril de 1992, que altera o desenho e retira os bairros de Itamonte e Alagoa.
Mapa 2 – Limites da Estação EcológiOs outros grupos que não haviam sido contemplados em suas reivindicações continuaram a luta pelo direito a permanecer em seus territórios. Além da população rural tradicional caipira, a região havia presenciado também a chegada de vários grupos urbanos que ansiavam por um contato mais estreito com a natureza, longe dos centros urbanos, abrindo pousadas, organizando-se em comunidades, com novas atividades econômicas; dentre elas, a Comunidade do Matutu, que ansiava pela mudança dos limites da Estação.
Sem desapropriação e regularização fundiária, o projeto perdeu força. Além disso, houve mudança de governo e da diretoria da FEAM, possibilitando que contatos políticos tornassem realidade algumas das antigas reivindicações, como a retirada, dos limites da Estação, da região da Macieira, no vale do Matutu. Com a criação da Fundação Matutu e o comprometimento em criar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), a área foi excluída do traçado, por ter grande importância para a manutenção de valores religiosos relacionados à doutrina do Santo Daime.
Dessa forma, assim como a região do Campo Redondo, a da Macieira também foi retirada do projeto da Estação Ecológica, minimizando os conflitos. Contudo, a Serra do Cangica não foi contemplada com os mesmos direitos culturais e religiosos, área que se insere na Comunidade do Santo Daime da Ecovila Gamarra, onde os conflitos persistem até hoje.
Apesar de ter ocorrido a retirada da Macieira do traçado, isso aconteceu após o Decreto de 92; sem, contudo, ter se promulgado um novo decreto com esse novo traçado, o que fez com que essas informações não tenham sido formalizadas, acarretando novos conflitos regionais.
De acordo com os mapas apresentados anteriormente, temos contatos com três desenhos que foram editados em momentos distintos: o primeiro com as incorporações dos bairros rurais em 1990; o segundo, em 1992, com a correção dos bairros; e o terceiro, em 1996, com a retirada da região da Macieira.
Uma conquista relevante para a efetiva implementação do projeto da unidade ocorreu quando houve o licenciamento ambiental para a duplicação da rodovia Fernão Dias, uma vez que a medida compensatória foi revertida para a Estação Ecológica do Papagaio. A proposta seria a desapropriação da fazenda Santa Rita. Contudo, quando ocorreu o pagamento, no fim da década de 90, já havia acontecido a recategorização da unidade para Parque Estadual da Serra do Papagaio, datada de 1998 e o órgão gestor passou a ser o Instituto Estadual de Floresta (IEF) em decorrência de uma reformulação institucional.
Apesar de muito pertinente a mudança de categoria, que ocorreu para alinhar os interesses de conservação aos turísticos, restaram algumas incertezas ao processo, como quais teriam sido as orientações políticas para a mudança, pois houve, inclusive, a mudança de nome. O nome da Estação remetia ao papagaio de peito roxo, Amazon bignáceo, endêmico da região, e não à Serra do Papagaio. O conjunto montanhoso da região engloba a Serra do Cangica, Serra do Garrafão e vários outros maciços, não apenas a Serra do Papagaio, o que tem causado conflitos regionais até hoje.
Enfim, quando a Estação Ecológica do Papagaio foi criada, as atividades minerárias e de carvoarias já tinham sido paralisadas e a economia regional baseava-se na pecuária leiteira. Daí o grande conflito com a população que continuava fazendo uso de suas áreas, já que a desapropriação e a indenização ainda não haviam ocorrido. Muitos moradores do campo nem sabiam da unidade, nem quais os seus propósitos e implicações e, muito menos, as áreas que estavam envolvidas. Apenas foram saber da Estação quando já havia sido transformada em Parque. Ou seja, a população rural seguiu abrindo pastos, construindo casas, trutários e bairros.

Mapa 3 - Estação Ecológica do Papagaio, traçado de 1996 - Fonte: elaborado pela autora com dados extraídos de arquivos da Fundação Matutu 

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