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Opinião
27/02/2019 09h00

EVOÉ, um conto de Carnaval 3

Por Henrique Selva Manara

Parte 3: Valentina e Benjamim, dois erês perdidos na multidão

Sábado, amanhece na capital. Apesar do ar matutino, quando normalmente carros e motos ganham as ruas em busca da labuta de cada dia, um rio de pessoas coloridas invade as principais avenidas. Anjos e demônios, vacas e sereias, piratas e cangaceiros, bailarinas e pierrôs margeiam o rio Arrudas, devolvendo-lhe os cílios que outrora tivera. Benjamim sente os primeiro raios de sol fazendo cosquinhas em suas pálpebras, deitado no colo de sua irmã, inicia o lento retorno do reino de Morfeu. Valentina, já acordara há tempo, cintilante, olha com paixão cada folião enquanto cuida do despertar do pequeno irmão. Quando se levanta, Benjamim traz consigo um buraco, nada haviam comido desde a manhã anterior, dois pães de queijo, um para cada, assim disse o palhaço do sinal. “-Valentina, tô com fome.” “ -Vem, Benja, vamos ver quem chegou na cidade.” Essa era a brincadeira dos dois, iam todas as manhas para a rodoviária, como se a qualquer momento alguém pudesse retornar para levá-los “para lá onde é bom, onde é melhor” *. No caminho entre a Guaicurus e a rodoviária uma imensa atriz lhes sorri na parede. Valentina conta “- Essa é a Santa Teuda, é ela quem cuida dos malabaristas do sinal e das crianças do brejo da cruz.” Benjamim olha tranquilo para o grafite, a senhora parece gargalhar, de seus olhos saem pequenos raios azuis de esperança, Benja sorri. Ao fundo um trompete toca o brilho de uma estrela, quando Benja olha para o lado vê a correnteza de purpurinas recheadas de corpos sem nome. A multidão é louca e ensurdecedora, em poucos segundos a pororoca de gente afasta Valentina, Benjamim só consegue ver os magros braços da irmã tentando lhe alcançar. Suas pernas saem do chão e ela levita entre ombros, braços e peitos, sendo levada pelo cortejo brilhante. “-Cadê Valentina?” O som seco de um tamborim bate em seus ouvidos ao cair no chão frente a seus pés. Benja pega o instrumento, olha para o alto para ver se acha o dono. São tantas grandes pernas brilhantes e poucos olhos para baixo. Valentina segue nadando em braços distantes de seu grito de ajuda. A multidão não tem nome, carrega frágeis barragens, não tem olhos para aquele pequeno corpo perdido na cidade, segue tão faminta de desejo de libertar-se do rei que mal percebe uma semente se afogando em seus delírios. A multidão é cega, mas o individuo tem audição. No meio das ondas de corpos sem contornos um tambor ouve o lamento da criança e silencia seu batuque. Dionísio guarda as baquetas e nada até a menina, a abraça protegendo seus ouvidos e a leva para baixo de uma árvore. Na rodoviária, Benjamim chega procurando a irmã. Ela tinha lhe dito para irem para lá. Como um relógio, eram eles que tatuavam na memória dos viajantes a chegada e partida de cada um que lhe cruzassem o olhar. Os erês da rodô. Guri esperto, conhecia bem os caminhos, mais cedo ou mais tarde encontraria a irmã, o sorriso da atriz havia lhe dito. Tocando seu novo brinquedo, o pequeno tamborim, Benjamim se encanta com uma estranha que adormece num banco. Percebe que a moça esta entre o mundo de cá e o de lá, onde ele esteve há pouco. Se aproxima tocando seu tamborim, olha pra ela e diz : “_ A senhora é daqui, dona?”
(continua...)

*referência a dramaturgia “Ó o Sol”, de Dhu Rocha.

Dia desses
acordei com os olhos cheios de vazio
prontos para errar
livres para sonhar,
fui caminhando na faixa amarela,
me equilibrando no meio da rodovia,
sabia que não podia parar,
era como se meu caminhar
fosse os dedos de um violonista
a executar uma canção sagrada,
uma canção popular, porém, inconstante,
cheia de nuances
de altos e baixos,
de luzes e sombras,
haviam gatos e anjos caídos no meu caminhar...
flores com amnésia,
fontes escondidas
atrás de montes de pedras,
e velhas senhoras nas varandas de suas casas,
com as portas abertas.

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