Na velha e querida São Lourenço de outrora, tanto de minha infância quanto de minha juventude e idade adulta, havia muitas coisas diferentes. Não só na paisagem, antes composta ― inclusive em grande parte da área central ― de terrenos baldios, cheios de mato, lixo, alguns sendo verdadeiras depressões, ruas e calçadas sem calçamento, muita poeira, poucos carros, muitas charretes, burrinhos-cargueiros e carroças. Nessa São Lourenço o pequeno Filipe catava marcas de cigarro nas ruas e depósitos de lixo espalhados em pleno centro, sem qualquer padrão. Passeava nas margens do Ribeirão São Lourenço e atravessava suas pontes por baixo. Via o mato ser queimado na época de seca, enchendo a cidade de cinzas, e entrava nas grandes poças que inundavam os terrenos, descalço, vendo a água cheia de girinos. Gostava de ver as plantas nos terrenos baldios, a mamona, a dormideira e uma flor roxa cujo nome desconhecia. Se é verdade que os urubus abundavam em nosso céu e telhados, isso era compensado pelo voo em conjunto dos grupos de andorinhas e de marrecos do Parque. As pessoas que compunham tal paisagem também se foram pouco a pouco, fazendo com que ela ficasse cada vez menos florida. A cada dia que passa encontra-se menos gente de nossa geração e menos conhecidos. Quando comecei a tomar consciência do mundo e passei a cumprimentar as pessoas na rua, me sentia muito importante. Às vezes, indo de nossa casa na Wenceslau Brás, 192, nos fundos do Bazar São José, de meu pai, até o Correio, contava quantas pessoas eu havia cumprimentado. E eram em número cada vez maior. Lá estavam os amigos de meus pais, os parentes ― raros ― e meus colegas de escola.
Por outro lado, sendo uma cidade com menos habitantes, especialmente antes da era da televisão e outras modernidades, amigos, parentes e vizinhos tinham mais tempo de se visitar e conversar. Hoje, se chega alguma visita de surpresa, especialmente na hora do Jornal Nacional ou das novelas globais, a cara de decepção de quem as recebe é notória. Nos primeiros anos de minha vida era comum os vizinhos colocarem cadeiras na calçada, à noite, para ficarem conversando, enquanto a criançada se punha a brincar.
Tudo isso fazia com que alguns fatos e acontecimentos levassem a um trauma bem maior do que acho que aconteceria hoje em dia ― embora não negando que ainda aconteça ―. Penso também que a solidariedade era até maior. Isso não é culpa das pessoas em geral, é culpa das mudanças que acontecem no mundo com o correr dos anos e das décadas. Somos também um produto do meio e se o meio muda, mudamos nós também, literalmente ou em parte.
Neste espaço que me foi dado, gostaria de lembrar alguns fatos que marcaram minha vida na sua primeira metade e que chocaram ou causaram espanto na população. Quero ressaltar que não tenho a intenção de me lembrar de todos os eventos, estou citando os que me deixaram marca e em quase todos eu estava presente na cidade. Escreverei em ordem cronológica. Quando citar o dia do acontecimento é porque tenho certeza absoluta da data e pode ser registrada, sem dúvida, como fato histórico.