10:13hs
Sexta Feira, 19 de Abril de 2024

Leia nossas últimas edições

Leia agora o Correio do Papagaio - Edição 1845
Variedades
24/08/2015 15h45

'Imagens' coloca espectador numa situação incômoda

Por sua interpretação de Cathryn, a solitária e perturbada escritora de livros infantis de Imagens, um dos pontos altos da carreira de Robert Altman, a atriz inglesa Susannah York (1939-2011) recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, três anos após ser indicada para o Oscar de melhor coadjuvante por A Noite dos Desesperados (1969). Essa introdução é necessária porque Imagens não existiria sem ela. Literalmente. Altman confiava não apenas em seu talento como intérprete como em sua habilidade narrativa. Susannah escreveu, de fato, um livro durante as filmagens desse thriller psicológico, rodado na Irlanda com fotografia do premiado Vilmos Zsigmond e trilha experimental de John Williams e Stomu Yamashta.

O livro de Susannah York, In Search of Unicorns (publicado em 1973), é uma parábola invertida da vida de Cathryn em Imagens. Nele, personagens de contos de fadas vivem sua vida imperturbável ao lado de criaturas extraordinárias. Já no filme, a escritora (que lê excertos do livro) vive acossada por fantasmas da vida ordinária. Recebe telefonemas anônimos que a deixam desconfiada da infidelidade do marido, sofre de transtorno esquizoafetivo e, como se não bastasse, ainda recebe a visita de uma adolescente (chamada Susannah) que revela seu maior desejo: ser como ela quando crescer.

Altman inverte tudo no filme, o que justifica a confusão mental da escritora, num movimento pendular esquizoide entre realidade e projeção. Até os nomes dos atores foram deliberadamente trocados para confundir o elenco. Susannah York é Cathryn. Já Cathryn Harrison, a adolescente, chama-se Susannah. A fronteira entre identidades é eliminada num filme não linear, experimental, em que som e imagem buscam equivalência pelo contraste - Yamashta usa pedaços de cristais e instrumentos japoneses de percussão para traduzir a frágil condição da mulher, isolada numa casa de campo onde confronta seu duplo.

A sequência da justaposição dos rostos da escritora e da adolescente na vidraça, em particular, remete ao clássico de Bergman no gênero, Persona (1966), em que uma atriz se identifica com sua enfermeira ao limite da troca de identidade.

Em Imagens, a persona da escritora serve para proteger seu ego e manter o que resta de seu delicado equilíbrio. Como autora, cria um mundo de pequeninos seres que vivem pacificamente, como nos contos de fada, que em tudo contrastam com seu mundo real, de vidas igualmente minúsculas. A busca do unicórnio por sua criatura Una, no livro infantil, é também a procura do ser idealizado que ela certamente jamais vai encontrar - o marido se torna irreconhecível a seus olhos, o vizinho libidinoso parece ameaçador, como um antigo amante do qual guarda uma vaga lembrança que a culpa apaga.

Por vezes, essas (des)conexões não funcionam. Altman quer que o espectador assuma o ponto de vista da protagonista, naturalmente comprometido por sua fragmentada dimensão esquizofrênica. Exemplo de associação simplista é o quebra-cabeças que Cathryn e Susannah, filha de um antigo amante, montam juntas, sem ter a mínima ideia da imagem que se formará no final (o espectador sabe, no entanto, que é a da antiga casa onde viveu sua infância solitária).

Por coincidência ou não, a distribuidora Versátil coloca simultaneamente no mercado outro filme de Altman, Três Mulheres (1977), que guarda parentesco tanto com a temática de Imagens como sua estética. Nele há também a identificação entre duas mulheres (Sissy Spacek e Shelley Duvall) e um terceiro personagem, uma pintora grávida (Janice Rule) que cria figuras fantásticas, seres híbridos que combinam duas naturezas, a animal e a humana.

Contudo, o exercício de Imagens é ainda mais radical, não apenas por ousar traçar uma correspondência entre interpretação e esquizofrenia como por colocar o espectador numa situação incômoda, a de estar sendo vigiado pelo olhar das câmeras que se multiplicam - a partir mesmo do próprio cartaz do filme, em que o aparelho é cortado com uma faca, a mesma usada por Cathryn para justificar o gênero thriller de um filme que, naturalmente, é muito mais do que isso. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: Estadão Conteúdo
PUBLICIDADES
SIGA-NOS
CONTATO
Telefone: (35) 99965-4038
E-mail: comercial@correiodopapagaio.com.br