14/06/2022 05h10
Bruno Pereira montou equipe de vigilância indígena contra crime
No idioma mayoruna, um jovem alerta por rádio comunicador a presença de "nauas" (não indÃgenas) no Rio ItaquaÃ, na Amazônia, dentro de terra indÃgena. Um kanamari põe no céu um drone e documenta a invasão do território protegido. Em pouco tempo, a polÃcia terá em mãos o flagrante e a identificação dos caçadores. É a vigilância indÃgena, que passou a subsidiar a fiscalização oficial e a impor derrotas ao crime dentro da floresta.
Por trás do trabalho de ensinar matises, kanamaris, mayorunas, kulinas e marubos a operar uma parafernália tecnológica que muitos nunca tinham visto está o indigenista Bruno Pereira, desaparecido desde o último dia 5. A pedagogia foi inspirada na técnica de trabalhar com desenhos que os Médicos Sem Fronteiras usam para ensinar procedimentos a tribos da Ãfrica. "O Bruno ia com a gente pelo mato, ensinava tudo. A gente trabalha aqui no risco, de noite e de dia para cuidar da nossa terra de todos pescadores e de tudo", contou um mayoruna que, por medo da reação de criminosos, pediu para não ser identificado.
A vigilância começou a ganhar corpo em setembro de 2021 e em pouco tempo os cerca de vinte indÃgenas treinados já deram resultados. Bruno queria expandir o projeto para o Maranhão. Além de prejuÃzos financeiros a caçadores e a pescadores ilegais, eles têm subsidiado a fiscalização em Atalaia do Norte, Tabatinga e Manaus (AM). Ao desaparecer, Bruno Pereira levava à PolÃcia Federal um novo conjunto de diários, fotos, vÃdeos e informações georreferenciadas feitos pela equipe.
A ideia nasceu de uma demanda conjunta dos povos do Vale do Javari como solução ao arquivamento de denúncias por "falta de informações qualificadas". O monitoramento se mostrou necessário por um motivo vital. Os infratores adentram os territórios preservados em busca principalmente de tracajás, pirarucus e antas para vender no mercado paralelo. "São recursos vitais para os irmãos isolados que vivem ali. Estão vulnerabilizando os parentes marubos e temos informações de que está faltando comida para os Korubos", diz Beto Marubo, principal liderança indÃgena do Javari, que atua em parceria com Bruno. Como revelou o Estadão ontem, Marubo anda escoltado e está ameaçado de morte.
A equipe de vigilância indÃgena agora está dedicada a descobrir o paradeiro de Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Ontem, a melhor pista era um trecho de mata revirada na calha do ItaquaÃ. Até o fim do dia, nenhum sucesso. A PolÃcia Federal periciou o freezer de pescados de uma embarcação, mas não apresentou avanços.
Apesar de toda a movimentação militar, os indÃcios de atividade ilegal não param no extremo da Amazônia, na fronteira com o Peru. Um irmão do único suspeito de ligação com o desaparecimento tem percorrido as imediações da base móvel da equipe de vigilância. "O Caboclo está aqui, o freezer dele parece estar cheio de pirarucu. Avisa a polÃcia e pede pra fazer uma revista, ele está perto do furo do ItaquaÃ", alertou um kanamari.
TESOURO. A riqueza extraÃda por causa de uma fiscalização deficitária é imensurável. Há muito mais riqueza que peixes, ouro e madeira nos rios e florestas do Vale do Javari. Com recentes descobertas de áreas de nióbio, potássio, manganês e óxido de tântalo em outras regiões da Amazônia, o território indÃgena no extremo oeste do PaÃs onde atua o indigenista Bruno Pereira voltou a atrair a cobiça internacional. PossÃveis campos de extração de gás e óleo na reserva de 85 mil quilômetros quadrados foram mapeados ainda nos anos 1980, quando a Petrobras realizou pesquisas de campo.
A ofensiva pelas riquezas do Javari tem outras frentes conhecidas. A atuação de dragas para garimpar ouro, a pesca de espécies raras como o pirarucu, um dos maiores peixes brasileiros, e o comércio de madeira são as mais visÃveis delas. Essa cadeia econômica criminosa na região de TrÃplice Fronteira tem como liga o tráfico de drogas, que despeja dinheiro e armas pesadas nos municÃpios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant.
Bruno Pereira esteve envolvido em todas as mais recentes operações contra o crime ambiental nessa região do Alto Solimões. Em 2019, coordenou a missão policial que resultou na destruição de mais de 40 dragas, um duro golpe no mercado do garimpo. Pouco depois, perdeu a coordenação que ocupava na Fundação Nacional do Ãndio (Funai) e passou a atuar voluntariamente na União das Organizações IndÃgenas do Vale do Javari (Univaja).
PASSO A PASSO. A última expedição começou em 2 de junho, uma quinta-feira, quando subiu o Itaquaà para se reunir com a equipe de vigilância indÃgena, na companhia do jornalista inglês, colaborador do The Guardian que percorre a Amazônia para a produção de um livro. Como os "nauas" não podem entrar no território demarcado, o encontro foi na comunidade do Lago do Jaburu.
No domingo, 5, desceriam o Itaquaà e o Javari com novos dossiês. Tinha uma agenda prevista com a PolÃcia Federal em Tabatinga. No caminho, parou em uma das comunidades conhecidas por servir de entreposto para narcotraficantes e exploradores para conversar com uma liderança local. E sumiu.
Pouco antes, Amarildo Costa, o Pelado, suspeito preso, passou de barco acompanhando por um outro caçador fazendo intimidações. O Estadão localizou uma das testemunhas que prestou depoimento à PolÃcia Civil. "Eles levantaram as armas e um deles tinha uma cartucheira na cintura, que não é comum. Eles foram filmados. O Bruno ia levar o vÃdeo pra PF e agora sumiu tudo", diz a testemunha kanamari.
IDH. O prefeito de Atalaia do Norte (AM), Denis Paiva (PSC), negou vÃnculo com Pelado, único preso por suspeita de ligação com o desaparecimento. Ele visitou a casa do suspeito após a prisão e o procurador municipal chegou a assumir temporariamente a defesa. "Meu histórico não permite isso, meu caráter não permite isso. Quem me conhece sabe. As pessoas querem induzir, colocar palavras na nossa boca. Eu o conhecia, sim. Se disser que não, estou mentindo. Mas não tinha amizade, de compadre, de ele ir na minha casa e eu ir na casa dele", disse.
Atalaia do Norte tem o terceiro pior Ãndice de Desenvolvimento Humano do Brasil (IDH) e o pior do estado do Amazonas. A cidade, afastada do Peru somente pelo rio Javari, é pacata, mas tem um entorno conhecido pela intensa movimentação de infratores. Há influência de narcotraficantes brasileiros, peruanos e colombianos, segundo policiais e pesquisadores. O prefeito reclama do desamparo dos órgãos federais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo