23/05/2022 14h10
Cresce suspeita de elo entre vírus de hepatite e covid-19
Um tipo misterioso de hepatite aguda tem despertado a atenção de autoridades de saúde de diferentes paÃses do mundo ao longo das últimas semanas. A doença, que atinge crianças e já é investigada até no Brasil, não é ocasionada por nenhum dos vÃrus conhecidos da hepatite (A, B, C, D e E) e pode ter entre as suas causas uma relação ainda não esclarecida entre a covid-19 e um tipo de adenovÃrus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou até esta semana 348 casos da doença. A maioria das crianças apresentou sintomas gastrointestinais, icterÃcia e, em alguns casos, falência aguda do fÃgado e um quadro que acabou levando à morte.
O Ministério da Saúde criou uma sala de situação para monitorar 41 eventos suspeitos de hepatite aguda de origem desconhecida registrados até agora em território nacional. Entre eles está o de uma adolescente de 14 anos, de Ibimirim, sertão de Pernambuco, que foi hospitalizada em coma e precisou passar por transplante de fÃgado de emergência na sexta. Com esse, são seis os casos suspeitos da doença apenas em Pernambuco.
A primeira hipótese foi levantada por autoridades de saúde do Reino Unido. Lá, os primeiros casos foram registrados e tratava-se de uma hepatite causada por um adenovÃrus. Estudos mostraram que até 70% dos doentes testaram positivo para o adenovÃrus 41F. Ele afeta mais crianças, jovens e pessoas imunossuprimidas. Provoca resfriado ou problemas intestinais.
"Inicialmente achou-se que o adenovÃrus seria a causa das hepatites agudas, mas o fato é que ele não aparecia em todos os casos", explicou o infectologista Marcelo Simão, da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas. "Em muitas crianças que apresentaram quadros graves não foi possÃvel isolar o vÃrus; e em algumas na qual foi feito um transplante não se achou o vÃrus no fÃgado retirado."
Especialistas notaram também que muitas crianças tinham tido covid-19 antes da hepatite aguda. Um estudo publicado na Lancet na semana passada propôs, então, nova hipótese. Segundo o trabalho, uma combinação entre as duas infecções estaria provocando a doença hepática aguda.PartÃculas remanescentes do Sars-CoV-2 no trato intestinal das crianças estariam servindo de gatilho para uma reação exagerada no sistema imunológico a uma infecção posterior pelo adenovÃrus 41F. A proteÃna spike do coronavÃrus é considerada um superantÃgeno. Ela torna o sistema imunológico mais sensÃvel. Assim, potencializaria o efeito do adenovÃrus 41F. Normalmente, esse vÃrus não provoca problemas mais graves.
A reação seria similar à provocada na SÃndrome Inflamatória Multissistêmica. Essa condição foi identificada em crianças com covid longa. Nesses casos, há uma ativação anormal do sistema imunológico por causa do superantÃgeno. Ele desencadeia uma reação autoimune extremamente inflamatória. Uma eventual exposição posterior a um adenovÃrus poderia provocar uma reação ainda mais forte do organismo. É o que pode estar acontecendo nos casos de hepatite aguda.
"A hipótese mais aceita atualmente é de que essa hepatite está sendo provocada por uma reação imunológica exagerada causada pela combinação desses dois vÃrus que acaba por agredir o fÃgado", disse Simão, cujo nome integra a lista da Universidade de Stanford, nos EUA, dos cientistas mais influentes do mundo. "Por que o fÃgado? Ainda não sabemos."
VARIAÇÃO
Outra questão ainda não esclarecida, segundo Simão, é por que os casos de hepatite aguda só começaram a ser notados agora, dois anos depois do inÃcio da pandemia. Uma explicação possÃvel estaria relacionada à variante do Sars-CoV-2 atualmente em circulação.
Para o presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaez Brito, a hipótese da combinação dos dois vÃrus é, atualmente, a mais provável para explicar os casos de hepatite aguda em crianças, embora ainda não esteja fechada.
"O que acontece de diferente neste momento atual da nossa vida é que estamos sofrendo a modulação contÃnua de uma pandemia", disse Brito. "Somos bombardeados minuto a minuto por um agente infeccioso circulando em uma magnitude gigantesca; qualquer coisa nova que apareça pode ter relação com isso."
Dados da OMS e de estudos feitos em Israel, Estados Unidos e Ãndia reforçam a hipótese. O trabalho israelense, coordenado por Yael Mozer Glassberg, do Centro Médico Infantil Schneider, mostrou que 11 de 12 crianças que tiveram a hepatite tinham tido covid-19. Nenhuma delas, porém, testou positivo para o adenovÃrus.
A OMS Europa apontou em um relatório divulgado neste mês que até 70% das crianças com menos de 16 anos que desenvolveram a hepatite aguda tiveram diagnóstico de covid-19 anteriormente. Além disso, explicaram especialistas, outras crianças podem ter tido a doença de forma branda ou mesmo assintomática; ou seja, sem um diagnóstico oficial.
Um trabalho feito nos Estados Unidos e publicado em Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition analisou o caso de uma menina de 3 anos. A garota apresentou falência hepática alguns dias depois de se recuperar de uma covid branda.
"As descobertas da biópsia do fÃgado e de exames de sangue da paciente são compatÃveis com um tipo de hepatite autoimune que pode ter sido deflagrada pela covid", explicou a pediatra Anna Peters, gastroenterologista do Centro Médico do Hospital de Crianças de Cincinnati, nos EUA, responsável pelo estudo, ao comentar o trabalho.
Segundo a especialista, é impossÃvel provar a existência de um vÃnculo direto entre a covid e a doença hepática. Mas o vÃrus pode ter deflagrado uma resposta imune anormal. Ela seria geradora do ataque ao fÃgado.
Um levantamento feito na Ãndia no ano passado acompanhou 475 crianças que tiveram covid no paÃs. Delas, 47 apresentaram hepatite aguda. Recentemente, com os novos casos surgidos na Europa e nos EUA, pesquisadores se voltaram a esse estudo indiano de 2021.
"O único fator em comum que achamos entre essas crianças foi que todas tinham sido infectadas pela covid", disse o principal autor do estudo, Sumit Rawat, professor associado da Escola de Medicina de Bundelkhand, em Madhya Pradesh, na Ãndia, em entrevista para agências internacionais. "Provar que a covid está de fato provocando essa hepatite vai demandar ainda muito estudo, mas uma pista importante é que os casos da hepatite caÃram quando o Sars-CoV-2 deixou de circular na região e voltaram a subir quando a covid estava em alta."
NADA COM VACINA
A ligação entre os casos de hepatite aguda e a vacina contra a covid, no entanto, foi totalmente descartada. Não há relação direta entre a vacinação e a hepatite. Além disso, a maioria das crianças que apresentaram o quadro agudo de hepatite tinha menos de 5 anos. Ou seja, elas não haviam sido imunizadas contra a covid.
Especialistas acreditam que novas pandemias de vÃrus emergentes - e seus eventuais desdobramentos -- devem se tornar cada vez mais comuns, por causa do impacto do homem no meio ambiente e no clima. "Estamos vivendo em um mundo complicado, com muitas doenças novas, muitos vÃrus novos; bactérias à s quais não dávamos importância estão agora causando enfermidades graves", disse Simões. "Apesar dos avanços tecnológicos, os desafios são cada vez maiores."
José David Urbaez Brito lembrou que, não por acaso, vivemos no chamado perÃodo antropoceno. É a primeira vez que um ser vivo, no caso o homem, alterou de maneira tão profunda e muitas vezes irreversÃvel o seu meio ambiente até que passou a dar nome a uma era geológica. "O homem alterou cadeias geológicas e ecológicas, aumentou a temperatura global de forma perceptÃvel, provocando um impacto profundo na dinâmica dos agentes infecciosos, notadamente dos vÃrus, que são formas muito simples", disse Brito. "As narrativas têm o poder de racionalizar o que acontece, nos deixando alienados; mas, a verdade é que vivemos um momento apocalÃptico de dimensões gigantescas, e a atual pandemia é um sintoma disso."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo