04/07/2022 11h04
Matador de Bruno e Dom era o menino de expedição de combate a invasões de 2002
Há 20 anos, em junho de 2002, começava no Vale do Javari a última grande expedição indigenista na Amazônia. Uma equipe de 35 indÃgenas e ribeirinhos, chefiada pelo sertanista Sydney Possuelo, atravessou a selva durante 105 dias para combater invasões no território habitado por 16 grupos isolados. Entre os mateiros que ajudavam na abertura de trilhas e na construção de canoas estava um ribeirinho que cometeria um dos crimes de maior repercussão da história recente da floresta.
O pescador Amarildo Costa de Oliveira, o Pelado, que na época da expedição tinha 21 anos, confessou ter executado o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. O assassinato completa um mês na terça-feira e com as circunstâncias sob investigação. IndÃgenas apontam crime de mando. A PolÃcia Federal chegou a descartar a hipótese, mas voltou atrás.
Da expedição de Sydney para cá, a rede criminosa da pesca e do garimpo se sofisticou com recursos do narcotráfico na trÃplice fronteira com o Peru e a Colômbia. O esquema de drogas e armas capturou comunidades ribeirinhas ao redor do território dos isolados. Pelado morava numa delas, a São Gabriel, onde um certo Rubens Villar, o Colômbia, que a polÃcia procura, controla a venda de pescados clandestinos.
"O que leva um jovem que participou daquela viagem a cometer um assassinato 20 anos depois? Não acompanhei a vida dele", disse Sydney.
Sydney disse ver indÃgenas e ribeirinhos como brasileiros afetados por um processo injusto de PaÃs. "Talvez o narcotráfico e a pesca ilegal sejam as únicas oportunidades. A gente não tem resposta para o caso desse rapaz. Se for questão de Ãndole, numa famÃlia de classe média também pode ter criminoso. É Ãndole ou são as duas coisas."
Farda
O universo de ribeirinhos e indÃgenas sempre foi de tensão por espaço. Indigenistas procuram apaziguar as relações e evitar o avanço de inimigos.
Na expedição, Pelado e colegas mateiros ganharam farda, tênis Kichute e chapéu. A rotina era acordar antes do sol, tomar um rápido café, passar o dia em caminhada, verificar vestÃgios de isolados e criminosos. O grupo construiu duas canoas para descer o Rio JutaÃ.
Ao longo da viagem, ribeirinhos contavam histórias de violência. Pelado relatou que, dias antes da expedição, ele e parentes tiveram um barco roubado. A famÃlia teria pago policiais para "acabar" com os bandidos. Num acampamento, Pelado sonhou com "flecheiros" levando facões e machados. Seus gritos acordaram o grupo. A história da expedição foi relatada no livro Homens InvisÃveis, que publiquei em 2007, pela Record.
Buscas
No dia 15 de junho, a PF organizou entrevista em Manaus para anunciar ter desvendado o crime. A busca pelos corpos foi feita, na verdade, por uma equipe de marubos, kanamaris e matises e pelo indigenista Orlando Possuelo, filho de Sydney e colega de Bruno.
Em 2002, Orlando tinha 17 anos quando participou da expedição do pai em 2002. Nos últimos anos, ouvia histórias de Pelado agora dono de um barco de pesca de 14 metros de comprimento que invadia a área indÃgena. Em 2017, Pelado ameaçou Bruno de morte. E teve o nome fichado por tráfico de munições. Com o governo Jair Bolsonaro, a partir de 2019, invasores intensificaram as ações no Javari.
A equipe de Orlando e dos indigenistas ouviu, ainda no dia das mortes, um pescador relatar ter visto "seu Bruno" passar numa "voadeira", como chamam lanchas de alumÃnio, motor 40, no ItaquaÃ, e o "60? indo atrás, com dois "caras". O barco de motor 60 era pilotado por Pelado. Na comunidade de São Rafael, o pescador pegou uma cartucheira e uma espingarda: "Bora, bora, vamos pegar esse cara", disse, segundo relatos. Entrou na embarcação Jeferson da Silva Lima, um homem que não tinha a tez exposta ao sol dos ribeirinhos. Os indÃgenas passaram a trabalhar com hipótese de crime de mando.
A diferença dos motores dos barcos permitiu que Pelado se aproximasse da voadeira. Com duas pessoas, o barco de Bruno fazia 45 km/h, dez a menos que o de Pelado. "Isso é muita coisa na Amazônia", disse Orlando. A perseguição foi facilitada porque o barulho do motor não permitiu a Bruno perceber a aproximação.
A cerca de 15 metros, Bruno, que estava na proa, levou um tiro no abdômen - a perÃcia registrou outro no tórax e um na cabeça. Ele perdeu a direção e disparou uma arma a ermo. A voadeira entrou na vegetação da margem direita do ItaquaÃ, quebrou galhos, a hélice se enroscou no mato. Em seguida, houve mais disparos. Dom morreu com um projétil também no abdômen. A sequência foi descrita pelos indÃgenas da equipe de busca a partir de profunda análise das alterações do mato e do solo.
Orlando e os indÃgenas foram a São Gabriel, onde vivia Pelado. Jeferson entrou na conversa: "Ninguém conhece Pelado aqui". Um policial militar que acompanhava o grupo comentou: "Esse Jeferson não é ribeirinho, é branco demais, tem tatuagem de cadeia". "Se ele não era pescador local, nunca teve prejuÃzo com ações do Bruno. Por que entraria nessa?", questionou Orlando.
Preso pela PolÃcia Militar, Pelado disse que houve um "embate" entre Jeferson e Bruno antes dos tiros. "Não houve nada disso. Matou por trás", disseram os indÃgenas. Pelado foi com a polÃcia num igarapé, onde deixara os corpos. Mas foi um indÃgena que chamou a atenção para uma árvore derrubada. Debaixo da galharia o chão estava queimado. Os ribeirinhos tinham posto fogo nos corpos e galões, mas não conseguiram destruÃ-los. Esquartejaram e enterraram. "O que você fez?", disse baixinho Orlando a Pelado, quando os corpos foram encontrados. "Pois é, agora tenho que pagar", respondeu.
Orlando afirmou que Bruno tinha por marcas coragem, confiança e lealdade. E paixão pelos indÃgenas. "No campo, era parceiro e firme nas suas posições", lembrou o indigenista.
Fonte: Estadão Conteúdo