12/05/2015 10h10
O antológico 'Rosa de Ouro' é homenageado em 4 noites no Rio
Mais do que susto, foi um assombro. Ao ouvir aquela senhora de 63 anos cantar em um restaurante no bairro da Gloria, na zona sul do Rio de Janeiro, veio tudo à tona. O estranhamento que sinalizava paixões, capaz de tirar as coisas do lugar e deturpar a própria beleza, era tudo o que o garoto queria sentir de novo. Garoto nem tanto. HermÃnio Bello de Carvalho tinha 29 anos e um ouvido atento para tudo o que saÃsse do comum. Ele já havia estranhado o timbre de Aracy de Almeida, as frases de Louis Armstrong e a dor de Billie Holiday. Já havia se inebriado da sinistra fluência de Cartola e da força demonÃaca do flamenco de Pastora Pavon, "La Niña de los Peines", que viu cantar em uma célula do Partido Comunista em Santa Teresa.
Mas agora HermÃnio estava diante de um abalo sÃsmico que ele jamais vira. A senhora que havia passado seus 20 últimos anos como empregada doméstica parecia ganhar ainda mais força quando ficava claro de que ela mesma não tinha a menor ideia do que sua voz poderia fazer.
Clementina de Jesus seguiu com HermÃnio e, dois anos depois, em 1965, seria lançada por ele para o mundo. O espetáculo que a colocou em cena recebeu o nome de Rosa de Ouro e se tornou um conquista histórica. Clementina tinha a seu lado Araci Cortes, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Contra ela, um Brasil que parecia querer esquecer tudo o que tinha cheiro de terra. "Imagine que aparecemos em uma época em que as referências eram ainda as estéticas da Bossa Nova e da Jovem Guarda", lembra HermÃnio.
Os 50 anos do Rosa de Ouro será revivido em uma série de shows que começa nesta terça-feira, 12, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro. Sua versão atualizada terá direção artÃstica de Gustavo Guenzburger e direção musical, arranjos e acompanhamentos do Grupo Samba de Fato (que tem Alfredo Del-Penho, voz e violão; Pedro Amorim, voz e bandolim; Pedro Miranda, voz e percussão; e Paulino Dias, também voz e percussão). Nos shows desta terça, 12, e quarta, 13, e dias 19 e 20, um coletivo de cantores e cantoras atualizam o repertório do Rosa, que seria posteriormente lançado em dois LPs. Sambas como o tÃtulo Rosa de Ouro (de Elton Medeiros, Paulinho da Viola e HermÃnio Bello), Batuque na Cozinha (João da Bahiana), o samba-canção Linda Flor (de Henrique Vogeler, LuÃs Peixoto e Marques Porto) e Benguelê (de Pixinguinha e Gastão Viana). Entre as vozes, estarão as de Nilze Carvalho, Mariana Baltar, Ãurea Martins, Ana Costa e Marcos Sacramento, quem HermÃnio considera "a melhor do PaÃs".
Rosa de Ouro, o original, realizou outras proezas além de mostrar ao Brasil que ele tinha uma mulher de nome Clementina de Jesus. "Até os crÃticos de música erudita se renderam a ela. Aquela afinação absoluta, o timbre inigualável, a voz volumosa", diz HermÃnio. Seu espetáculo foi a vitória de outras improbabilidades. "Fizemos aquilo com pouquÃssimos recursos." A produção modesta foi pensada para ficar em cartaz por um mês, algo que se estendeu e se estendeu por clamor popular e terminou ficando nos palcos por um ano, antes de sair para ser apresentado em outras cidades.
Aos 80 anos, HermÃnio Bello não amansa a alma. O sentimento de resistência que esteve no esboço de Rosa de Ouro aparece algumas vezes mesmo em uma conversa por telefone de vinte minutos. Primeiro, quando se lembra de que o centenário de Aracy de Almeida (1914-1988) passou em silêncio constrangedor ao mesmo tempo em que o de Billie Holliday não para de ganhar (justas) homenagens. A questão não é lembrar Billie, mas esquecer Aracy. Ele mesmo tentou disfarçar a injustiça em seu espetáculo estreado em 2014, Aracy de Almeida, A Rainha dos Parangolés, com músicas interpretadas por Marcos Sacramento. HermÃnio deixa no ar também a insatisfação pela ausência no mercado dos dois discos sobre o Rosa. "Como pode, em ano de centenário, a gravadora não ter relançado isso."
Além dos shows, o projeto propõe um ciclo de debates com participação do produtor. Origens do Rosa: o Zicartola e o Ambiente Musical do Rio em 1965 será o primeiro, nesta terça-feira, 12. Popular e Erudito: o Formato Mágico do Rosa de Ouro, nessa quarta, 13, diz sobre outra barreira que a força de HermÃnio e Clementina ajudaram a derrubar. Ali, diferente da Bossa e da Jovem Guarda, o território era livre. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: Estadão Conteúdo